sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Do (mal) juízo.

É inacreditável como conversas trazem insights. Às vezes, pontos obscuros de textos são trazidos à luz por um comentário fortuito feito numa conversa em tardes sem importância. Se isso é verdade em relação aos mais diversos assuntos - aprendi mais matemática desenhando que elaborando fórmulas, e mais biologia na herbologia da Arte que na escola - isso se torna inegável com o Tarô. Inegável. 
Conversava com a Zoe sobre a minha dificuldade com o Arcano Maior XX. O Julgamento, o Juízo Final, e, mais recentemente chamado Æon, é uma carta de conteúdo obscuro para além do óbvio. Estamos diante de um conteúdo cristão por excelência, talvez até mais cristão que o Arcano V. Se o Arcano V representa uma personalidade, o XX representa um evento


A Justiça
Tarocchi del Rinascimento (Giorgio Trevisan)

Ok, ok. Deveríamos comparar, na verdade, o Arcano XX com o VIII, diriam alguns. Mas a Justiça é uma ideia pré-cristã alçada ao status de virtude cardeal, e Ajustamento é uma adequação terminológica, não simbólica. É só reparar em duas questões: 
  1. A variabilidade da imagem d'A Justiça é mínima, talvez a menor dentre os Arcanos; 
  2. Até mesmo um leigo na Arte pode tecer considerações sobre essa imagem, e sobre seus atributos e símbolos, dado termos até hoje essa imagem representando os advogados e a Lei. 
Já o Julgamento... Soa-me, a priori, que a chave da interpretação se dilui no potencial escatológico cristão e perde-se muito do que ele proporia. 
Assisti hoje As Bruxas de Salem (The Crucible, 1996). Odiei. Não o filme em si, que é muito bom; justamente por isso, me inspira o que há de mais nobre: o asco pela mentira. E isso é odioso. (Confira um resumo do evento histórico que deu origem ao filme aqui.)



Princesa de Espadas / Abigail Williams (interpretada por Winona Ryder)
Thoth Tarot

Abigayl Williams (Winona Ryder, impecável). Assassina fria e cruel, dotada de uma arma pior que paus, pedras, adagas, punhais, revólveres e bombas atômicas: snaketongue. Sua língua bífida é capaz de voltar-se contra tudo e todos que a ameacem, com uma certeza no tom que beira a santidade. Maldita Princesa de Espadas, entregaria a mãe para obter o que deseja, ainda que o medo que a descubram em suas mentiras seja mais poderoso que a capacidade de obter vantagens.


Danforth e sua visão equivocada.
Rei de Espadas, Waite-Smith Tarot (detalhe)


Mas não é ela que me irrita, de fato; é o Juiz Thomas Danforth (Paul Scofield). Como pode ser tão parcial. Tão crédulo; ainda que seja parcial até mesmo em sua credulidade. Rei de Espadas mal aspectado. Invertido até para quem não usa cartas invertidas. Matar dezenove pessoas foi-lhe simples, até o momento deixou de ser irrisório pensar sobre o assunto. 
Quando um Rei de Espadas nega sua faculdade principal, o resultado não pode ser outro que não o desastre.
E daí vamos ao Julgamento.


O Parecer, Tarocchi del Rinascimento (Giorgio Trevisan)
O Julgamento de Salem


Como disse anteriormente, o Julgamento é um evento. Talvez, dissecando-o, percebamos outros detalhes sobre sua possibilidade divinatória.
Todo julgamento é um chamado. A Justiça é cega e age por meios misteriosos; o Julgamento não; as regras devem ser claras, ainda que falsas. Só se julga na presença do réu. Existem práticas, métodos para que haja clareza na sentença, sendo esta compreendida tanto pelo réu quanto pelos presentes. 
Acho curioso, nesse sentido, que cada vez mais nos especializamos na compreensão da infraestrutura dos julgamentos, ainda que não entendamos (quase) nada de Direito. Seriados pululam por aí. Para quem, como eu, está dez anos atrasado no cinema (correndo atrás do prejuízo a olhos vistos), resta (re)assistir Filadélfia e o Advogado do Diabo. E prestar atenção às sugestões dos leitores, rs.  
E daí a segunda questão: um Julgamento tem testemunhas. Tem presentes, expectadores, que estão na cômoda posição de terceira pessoa. Não, não, você está enganado. Não existem testemunhas na imagem, você deve estar pensando. Todos os presentes na clássica cena são participantes. 
E eu te respondo, com outra pergunta: qual é o seu papel diante das cartas, senão testemunha de um evento? 


Tarô de Nostradamus


A cena ocorre, mas é você quem observa, quem interpreta em condição cômoda de alheio à cena (a menos, evidentemente, que você seja o consulente e tema da presença do referido Arcano). É você quem julga a relação entre os presentes na cena e a situação-tema da consulta.
Terceira questão: há a presença de advogados e promotores. Há quem acuse, há quem defenda. Não existe Julgamento no Arcano VIII. Não existem testemunhas, advogados ou promotores por lá. Só causa e consequência, que são efeitos de outras causas e decorrência de outras consequências.








Mesmo que sejam imaginários, eles estão ali. Guiando, norteando, degladiando. O que aponta para outra questão própria d'O Julgamento: seu caráter maniqueísta. Aqui existe bem x mal, seja lá o que isso signifique - se todas as religiões escatológicas estiverem corretas no que concerne à ideia de salvação, eu realmente não sei como é que tanta gente certa pode ser tão discrepante quanto aos mesmos pontos.


Se eles estão desesperados... quem poderá nos defender? rs...


Por essas e outras esse Arcano me deixava pensando tanto. Como tais referenciais prévios poderiam ser disassociados dos seus aspectos mais obscuros, parciais, sectaristas e ainda manter a sua homogeneidade ideológica? Como o símbolo pode ser lido na sua acepção contemporânea sem perder sua proposta original?
Para isso, precisamos ver como ele tem sido representado nos Tarôs transculturais, já que os símbolos clássicos já foram previa e devidamente interpretados por Ricardo Pereira.
Mas isso já é outra história, para outro post.
Abraços a todos.

4 comentários:

  1. Achei um site que vicia, só não sei se é verdade o que sai dessa máquina:
    http://www.taroterapia.com.br/arcano/cap.html

    Bjs!

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  2. Oi Emanuel,

    Hoje já se faz um Julgamento sem a presença do réu, fato que distancia o Ajustamento, integração das partes envolvidas. Essa a justiça de olhos vendados. Mas a outra de olhos bem abertos nos encara e nos obriga a ver sua balança e sua espada, nos desafiando a ser aquela presença que falta.

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  3. Parabéns! O texto vem bem a calhar... :)

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  4. Oi Carol! O texto é do Giancarlo Schmid, que escreveu o texto do Mago aqui na Blogagem Coletiva. Ele é muito bom! E realmente esse trabalho dele vicia. :)
    Anônimo, eu não dispunha dessa informação. Perigoso isso, ausência do maior interessado na questão... Vou maturar esse aspecto, ok?
    Arierom! Obrigado. E olha que esse texto está pronto há uns dez dias... rs.

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Quando um monólogo se torna diálogo...