sábado, 28 de junho de 2014

Um Lenormand para Noites Sem Fim.



MEA CULPA: eu não sou adepto dos baralhos transculturais em geral. Por mais que isso possa soar conservador (e, de certa forma, é), eu não sinto plenamente à vontade ao utilizar baralhos que adaptem os símbolos a temas específicos, porque, na maior parte das vezes, percebo os mesmos símbolos obscurecidos em sua essência, restringidos em seus significados. A experiência com o Tarô me tornou um pouco mais reticente em relação a esse tema do que deveria, um ponto com o qual venho me deparando com certa frequência em meus estudos.
Entretanto, percebo que, quando nos propomos a extrair das artes em geral, e da literatura em particular, elementos de análise para aproximarmos a experiência do símbolo daquilo que encontramos no nosso cotidiano de leitura, o símbolo se expande, ganha aspectos particulares que outrossim estariam apenas latentes, como se nos apropriássemos daquilo que está à disposição de todos sem revelar-se imediatamente; como se, ao observarmos atentamente, o símbolo revelasse aspectos que unificam nossa experiência particular com a experiência do oráculo, singularizando-a e expandindo-a. Ressalto, porém, que com isso não incentivo a universalização de particularidades: aquilo que funciona em um determinado contexto, para determinado oraculista, embora correto, não corresponde ao que a carta representa de forma geral. Sua aplicação, portanto, é particular e deve figurar como estudo de caso e não como significado direto. Esse é um ponto que merece maior ênfase em outro momento, mas acho importante pontuar agora.
Nesse sentido, temos tido aqui no Conversas Cartomânticas experiências magníficas no que concerne ao Tarô. Percebi, entretanto, que faltava-nos algo mais a respeito do Lenormand, ainda que nossa Blogagem Coletiva esteja, pouco a pouco, nos preenchendo com possibilidades. O Petit Prince Lenormand e o Game of Thrones Lenormand foram e estão sendo duas experiências enriquecedoras. Não no sentido de limitar a leitura do livro, no primeiro caso, e do seriado, no segundo; mas no sentido de ampliar a percepção do oráculo a partir da observação atenta do texto e vice versa.
Em homenagem ao Dia do Baralho Lenormand, ocorrido em 25 de junho, proponho hoje a leitura de uma das melhores graphic novels de todos os tempos, de um dos autores que mais admiro: Sandman, de Neil Gaiman. Já falamos sobre ela anteriormente aqui, mas hoje buscaremos uma leitura diferenciada.
A experiência de ler uma obra, apontando suas referências ao Lenormand entre parênteses é uma constante nos textos de Tânia Durão. Sigo aqui seu exemplo, deixando explícito o convite para que visitem seu blog, Cartas Ciganas. Suas reflexões são sempre enriquecedoras e sua forma de escrever, única. 

Os Sete Perpétuos estavam, conforme expus anteriormente, ali, desde sempre, escondidos entre as 36 cartas do Lenormand. Vamos ao encontro deles, um por um, observando como as cartas se relacionam com suas personalidades e âmbitos de atuação, e, o mais importante, percebendo como, ao correlacioná-los, aspectos obscuros das cartas se revelam inteligíveis. Percebo isso sobretudo com Desejo e a carta 24, mas não antecipemos as coisas. Em ordem de “idade” (embora eternos e anteriores aos deuses, os Perpétuos possuem uma ordem de aparição no cosmos), vamos a eles.


DESTINO 
“O mais velho” dos irmãos, possui um Livro (26) onde estão escritas todas as possibilidades daquilo que ocorreu e daquilo que está por vir, sendo este seu símbolo. Seu reino é um Jardim (20) onde os Caminhos (22) correspondem a escolhas. Encontrar-se com Destino é fazer escolhas no jardim do seu palácio. Embora todos os caminhos levem a ele, não é possível encontrá-lo sem fazer escolhas.


DESENCARNE* [MORTE]
Conforme retratada em Sandman, Desencarne é uma jovem de inspiração gótica, cujo símbolo é uma Cruz (36) Ansata. No Lenormand, encontramos mais duas cartas que relacionam-se não só com o seu ofício, como com sua natureza: Foice (10) e Caixão (08). Curiosamente, os significados dessas cartas em especial, quando unidos em determinado contexto, nos trazem como resultado a visita desse Perpétuo. Desencarne, a cada cem anos, torna-se mortal para experimentar, por um dia, a natureza de sua função e, assim, entendê-la mais profundamente.


DEVANEIO* [SONHO]
O protagonista da história. Devaneio, o de olhos de estrela (16), é senhor de todos os mundos oníricos (muito bem representados na carta 32). Possui três itens nos quais guarda seu poder: Uma máscara [curiosamente, existe um Lenormand que retrata esse emblema: trata-se do Gilded Reverie Lenormand, na edição do autor: a recente e magnífica edição da US Games não possui as cartas extras (atualização em 29.06: A Chris Wolf me recordou que a Karla Souza sabiamente colocou na carta 14 do Esmeralda Lenormand - valeu pela lembrança, Chris!)], um saco de areia e um cristal. No primeiro arco da história, Morpheus – um de seus nomes – precisa ir ao encontro desses três objetos outrora perdidos. Seu reino é um castelo (19) onde estão os sonhos de todos os seres. Um de seus companheiros mais importantes é um corvo (12) que lhe serve de mensageiro. Taciturno, implacável e reflexivo: busca ser neutro em suas atitudes, mas sempre se depara com seus próprios anseios. Essa dicotomia o torna tão interessante, tão único. Conforme Gaiman, a história seria muito diferente se contada por outros irmãos, sobretudo por...


DESEJO
Desejo é o irmão/irmã que traz equilibro ao setenário. Três irmãos (Destino, Devaneio e Destruição), três irmãs (Desencarne, Desespero e Delírio) e ele/ela, que está para além da noção de gênero: Sua natureza reflete aquilo que o observador possui em seu coração. Homem ou mulher, ou ambos, ou nenhum, Desejo mora em uma réplica exata de si mesmo, mais especificamente no Coração (24), que é seu símbolo. Ainda que, costumeiramente, essa carta reflita os melhores sentimentos do consulente, a presença de Desejo, aqui, mostra-nos que não só de bons sentimentos pulsa a vida. Sou tentado a correlacionar a moradia de Desejo à carta 04, também: não há lar tão verdadeiro quanto si mesmo – algo que é evidente nesse Perpétuo. No baralho Judith Bärtschi, o Chicote (11) mostra-nos uma mulher sadomasoquista, uma das aparições de Desejo. Fútil, volúvel, inconsequente, mordaz e imprevisível: para mim, o personagem mais marcante, responsável pelas reviravoltas mais interessantes da história. Em Endless Nights, foi retratado por Milo Manara. Não consigo perceber melhor escolha para retratá-l@.


DESESPERO
Irmã gêmea de Desejo. Trata-se, porém, da segunda Desespero – a primeira foi destruída em circunstâncias misteriosas; considera-se, portanto, Desejo “mais velh@” que Desespero. Fica aqui claro um dos aspectos mais maravilhosos dessa graphic novel: existem inúmeras (inúmeras MESMO) lacunas que não influenciam na leitura, mas nos deixam ansiosos pela continuidade da obra. Das pontas que ficam soltas, poderíamos ter miríades de histórias que dariam continuação à obra ad infinitum. Contudo, talvez, ou exatamente por isso, Gaiman deixa-nos com vontade de mais, para que esperemos. Ou imaginemos.
Desespero tem por símbolo um Anel (25) com um anzol, que usa para ferir-se, lenta e cruelmente. Novamente, a referência à carta nos leva a questionar se sua atuação é sempre benfazeja – anéis marcam laços. Nem sempre, queridos ou quistos. Seu reino é composto por um vazio nevoento (06) repleto de espelhos, onde se refletem todos os desesperados. Inúmeros Ratos (23) ocupam o local.


DESTRUIÇÃO
O irmão mais misterioso, aparece pouco, mas representa muito. Seu símbolo é uma Espada (11 – no baralho Gypsy Lenormand, o Chicote é trocado por uma espada coroada por uma coroa de espinhos). Como o Cavaleiro (01), Destruição segue seu caminho, ficando pouco em companhia dos seus irmãos. Possui um Cão (18), que passa a acompanhar Delírio quando esta o visita. Seu comportamento lembra-nos em muito o contexto adjetivante da Montanha (21): por alguma razão que nos foge à leitura, Destruição busca limitar o contato com os seus de forma implacável. Ainda assim, ao contrário do esperado, Destruição é amável, bem-humorado e está sempre em busca de novas criações; isso sugere que os Sete Perpétuos não dominam apenas aquilo que lhes dá nome, como também seu oposto: Destino e o Caos, Desencarne e a Vida, Sonho e os Pesadelos (dos quais Coríntio é sua mais famosa criação), Desejo e a Realização, Desespero e a Esperança (para quem leu o primeiro arco, essa palavra terá todo um sentido!), Destruição e a Criação, e a óbvia relação, conforme veremos adiante, entre Delírio e Deleite. 
Destruição é mais velho que Desejo e Desespero.   


DELÍRIO
Outrora Deleite (algo lhe ocorreu que partiu seu coração para quiçá sempre), Delírio é a mais jovem, a caçula, a Criança (13) dos Perpétuos. De espírito benfazejo, porém tão implacável quanto os demais, Delírio fala por enigmas, não sendo sempre compreendida, mas por vezes antecipando eventos que Destino não quer revelar. Possui em um dos arcos um Peixe (34) de estimação, que leva como se fosse um balão de gás hélio. Embora não seja sempre levada a sério pelos seus irmãos, é a única que consegue reuni-los com relativa facilidade. Seu símbolo é uma bolha colorida, sem formato definido.

Para além dos Perpétuos, dois outros personagens merecem destaque, por terem preponderância na história e por possuírem arcos próprios e histórias que transcendem a obra original. São eles:


MORNINGSTAR [LÚCIFER]
Um dos Senhores do Triunvirato do Inferno, Lúcifer desiste do reino em função de um aparente tédio pela ordem das coisas. Abre um bar em Los Angeles onde toca piano todas as noites. Estrela da Manhã, como o Sol (31), esclarece pontos obscuros a Morpheus, dando-lhe as Chaves (33) do Inferno. Como ele mesmo diz, aí é que começam os problemas.
Sua personalidade fica mais evidente na série Lúcifer, da qual quatro histórias foram publicadas em uma edição de luxo. Uma das aquisições mais felizes que fiz, curioso por sua busca pelos Basanos – uma possível correlação com o Tarô. Nessa história, como em alguns diálogos de Sandman, percebemos também que o poder de um ser está relacionado com a sua aparição no Livro da Criação: quem veio primeiro, tem mais autoridade.


JOHN CONSTANTINE
Nota inicial: esqueça o filme estrelado pelo Keanu Reeves. O filme é divertido, e tal, mas não, aquele não é o John Constantine. Esse aqui é.


Mago, exorcista e um grande sortudo, John Constantine cruza com Morpheus no primeiro arco da história. Um anti-herói, mas ainda assim um protagonista (28) da própria história. Sinto-me tentado a associar a ele outra carta, por razões pessoais: em minha prática, a presença do Lírio (30) numa jogada de previsão atesta que, a despeito dos esforços do consulente a favor ou em contrário de determinado evento, este seguirá o curso correto e favorável a todos os envolvidos. Mínimo esforço, máximo efeito. Coisa que, tratando-se de Constantine, é literalmente uma constante. Para os seguidores da Escola Europeia, poder-se-ia associar tal característica ao Trevo (02). Se existe uma coisa com a qual Constantine pode contar, em seus pactos e relações, é com a sorte.  


Se você ainda não leu Sandman, leia. Não há muito o que dizer além disso. Considero esse début como um divisor de águas na minha relação com a literatura e os quadrinhos. Levando em consideração a relação entre Gaiman e George R R Martin (criador d’As Crônicas de Gelo e Fogo, da qual originou-se o seriado Game of Thrones e, deste, o Game of Thrones Lenormand) e de que, originalmente, Gaiman ofereceu o protagonista de Sandman como um personagem da obra de Martin Wild Cards (e que Martin considera um dos seus maiores arrependimentos tê-lo recusado), a leitura é imprescindível.
Indo além, é importante pontuar que George R R Martin era amigo pessoal de Marion Zimmer Bradley, conhecida pela magna obra As Brumas de Avalon. É impressionante como a estrutura de narração dos três – Bradley, Martin, Gaiman – capta o leitor a ponto de só percebermos que o tempo passou porque os olhos cansam e a luz escasseia. Se você leu um deles, leia os outros dois. E deleite-se com os três em igual medida.

Gostaria de deixar meu agradecimento explícito a duas pessoas em especial: Socorro Van Aerts e Chris Wolf.
Socorro Van Aerts, da De Keizerin Boutique, que garante a nós do Brasil acesso aos mais diversos Lenormand num preço acessível com um atendimento excelente. Se você deseja um Lenormand, dê uma passada na loja dela. E, se por acaso você encontrar nas suas pesquisas um Lenormand, que não está lá, não se preocupe: ela acha para você.



Chris Wolf vem se destacando no cenário nacional como uma das mais prolíficas representantes e mantenedoras da tradição europeia. Pesquisadora incansável, grande cartomante, excelente referência em pesquisas. Agende sua consulta – ela atende em diversos espaços no Rio e em eventos. Sem sua colaboração, esse evento não chegaria nem perto do que é. 
Para além das duas (obrigado, MESMO, meninas!), gostaria de deixar meu agradecimento a Alexsander Lepletier, Sonia Boechat, Tânia Durão, Katja Bastos, Odete Lopes, Karla Souza, Marcelo Bueno, Luqiam Osahar, Deborah Jazzini, Leandro Roque, Geraldo Spacassassi e a todos os participantes da Blogagem Coletiva Petit Lenormand, pessoas excelentes que tem demonstrado com seu trabalho a miríade de possibilidades que o Lenormand pode assumir, quando estudado com profundidade, afinco e afeto.
Muito obrigado, pessoal. Continuemos dando a esse oráculo a dedicação que ele merece. Aqui no Conversas Cartomânticas, vocês, leitores, oraculistas, pesquisadores e entusiastas, sabem que estão em casa. Sou grato a todos vocês pelo tanto que me fazem crescer e questionar. E, como é bom ressaltar, todas as sugestões são bem vindas.    
Finalmente, atestando a escolha do título desse artigo (uma homenagem ao arco Endless Nights, que possui como protagonistas cada um dos Perpétuos), que o encontro com o Lenormand seja para você um eterno deleite. Noite após noite. E fica, subentendido, um desafio: qual conjunto de cartas você consegue associar ao livro que está lendo nesse momento?
Abraços a todos.

*Em respeito à ideia original do autor, busquei nomes iniciados com a letra D para cada um dos Perpétuos cuja tradução não acompanhou sua referência em inglês. Originalmente, são Destiny, Death, Dream, Desire, Despair, Destruction e Delirium/Delight. A escolha por nomes com D limitou inclusive a escolha dos Perpétuos que comporiam a família, fato que considero fundamental para a utilização da nomenclatura conforme coloquei nesse texto. Os nomes utilizados na obra traduzida estão entre colchetes.